Sábado eu esqueci
completamente de colocar néctar para os beija-flores. Só fui deitar
muito tempo depois que o sol se levantou. Tive que trabalhar a tarde
e a noite toda. Quando terminei de fazer o jantar já nem era mais
sábado, e eu não havia sequer tido uma pausa para almoço. Eu
estava visivelmente exausto por fora. O corpo pedindo repouso ao
longo do dia todo. E aquele macarrão simples mas sofisticadamente
delicioso me convidando para uma cesta pós refeição.
Eu queria dormir
sim. Dormir muito. Por longas e intermináveis horas. Casulo de sono
enrolado em lençóis de utopia e travesseiros sonha-dores.
Providencial, aquele domingo traria enfim o ócio e o silencio
necessários para um sono revitalizante. Todavia foi justamente o
silêncio que despertou minha vontade de ficar ao mesmo tempo quieto
e atento. Como tocaia e meditação reunidos para capturar os
pensamentos mais ariscos e fugidios.
Fui para o quintal
munido de um velho caderno sem capa e aquela caneta gostosa do curso
de paisagismo. O chão molhado pela mesma chuva que havia lavado toda
a tensão do dia enquanto eu subia a ladeira empurrando minha
bicicleta na volta do trabalho. Refrescante e tão providencial
quanto um domingo. No ritmo dos passos incertos e escorregadios
decidi aceitar cada pingo. Estava mortificado pelo cansaço mas me
sentia vivo e presente, presente e infinito, infinito e passageiro:
cometa diante de um sol.
A rua tão vazia.
Fiquei admirando aqueles paralelepípedos enquanto seguia
acompanhando o trilho do bondinho. Amava cada um deles, os infinitos
paralelepípedos. Devaneava imprudentemente com a passagem deles
abaixo de meus pés, me permitindo enxergar em cada retângulo de
pedra uma cena representando algum momento importante de vida.
Mosaico de vídeos vivos mas quase sem cor ou som. Apesar da presença
constante e bem definida dos trilhos me conduzindo na direção
certa, enquanto via naquelas rochas as minhas memórias reunidas, não
havia uma sequência linear nelas. Impressões de muitos passados,
junto com diferentes convicções sobre futuros outrora imaginados,
se emaranhavam como num mural de fotos de algum quarto de adolescente
da década de 90.
Era o mural de um
antigo jovem que ainda me habita timidamente, com sua ingenuidade
crônica e seu imprudente excesso de sonhos. São tantos, que
misturados, não conseguem ser organizados em metas e objetivos bem
estabelecidos. O desejo é vital e por isso é também efêmero. Era
uma espécie de retrospectiva de futuros que não aconteceriam mais.
Ficariam em suspenso ao longo da linha do tempo. E por não terem de
fato passado iam acompanhando aglutinados ao redor do foco do ponto
presente. E ao longo do trajeto fui entendendo que aqueles rochedos
do passado é que garantiam a estabilidade da direção daqueles
trilhos enquanto iam os espremendo como que magneticamente.
Uma rua inteira de
paralelepípedos. E eu tendo que fazer muita força o tempo todo
porque a inclinação da ladeira era tão inescapável quanto a dor
dos sonhos que não se realizam. Tudo o que a gente resiste
simplesmente persiste. Insiste em permanecer até que seja feliz o
que está triste.
Madruguei em tocaia,
investigando aquela rua que agora mora embaixo dos meus pés quando
estou avançando vida acima. Antes de deitar os pensamentos no
travesseiro apurei bem aquela dura epifania. Palavras, que rabiscadas
num caderno qualquer, guardavam aquele sentimento indigesto
finalmente no passado. O alívio chamava o sono...
Não coloquei o
néctar para os beija-flores. Mas sorri, leve e naturalmente. A
palavra domingo ensolarando um delicioso repouso em meu peito. É que
mesmo tendo me esquecido por completo, com sorte recebi a abençoada
visita de um deles, os beija-flores. É que ao redor haviam flores,
várias, desabrochando por todo o jardim...
Uirá
Felipe Grano Gaspar – 13-12-2014 – Santa Teresa – Rio, RJ